O ano era 1997. Enquanto o mundo se distraía tragicamente com o desenrolar da morte de Lady Dai, vítima da insanidade midiática ao extremo, e com a trama científica da clonagem da ovelha Dolly, o Brasil seguia sob as vacilantes rédeas neoliberais da era FHC. Na TV, o mesmo canal onde Zé Ramalho cantava as agruras da "Vida de Gado" na abertura da novela, o ainda semi grisalho Bonner noticiava extasiado em rede nacional a prisão da banda Planet Hemp.
Grande ano da música brasileira, com lançamentos de discos que ajudariam a notabilizar ainda mais os produtivos anos 90, que imprimiria definitivamente suas digitais na subjetiva calçada da fama nacional. O citado grupo de Marcelo D2 antes de ir preso por falar de maconha, agraciou o mercado com o fantástico 'Os Cães Ladram Mas a Caravana não Pára'. O ano também contaria com pedradas a exemplo do primeiro cd do Charlie Brown e o "Quebra-Cabeças", sucesso estrondoso e pop de Gabriel o Pensador. Sem esquecer de mencionar também o "Lapadas do Povo", quarto disco de estúdio da melhor fase dos Raimundos.
"Em 2018 o álbum foi incluso na lista de leitura obrigatória para o vestibular de 2020 da Unicamp. Meses depois, a obra virou livro, lançado pela Companhia das Letras".
Mas foi em dezembro, precisamente no dia 20, poucos dias antes do Natal, que fomos presenteados com um dos discos mais relevantes da música negra mundial, 14° mais importante do Brasil segundo ranking da Rolling Stone e sem dúvida alguma, um dos mais notáveis lançamentos do gênero Rap de todos os tempos no Brasil e no mundo. Sim, ele mesmo, o quarto disco dos Racionais, o histórico 'Sobrevivendo no Inferno'. Obra que extrapola o universo do hip-hop, flerta com fotografia, literatura e jornalismo de denúncia. Mais do que um disco é um verdadeiro manifesto político da periferia, álbum que colocou merecidamente em definitivo os Racionais no panteão sagrado dos grandes nomes da música.
O Sobrevivendo no Inferno é um divisor de águas não só na carreira dos Racionais, mas para o rap nacional. O grupo, que seguia uma trajetória ascendente na qualidade dos seus lançamentos, incluindo o primeiro grande disco independente de sucesso, (Raio X do Brasil, lançado em 1994), ajudou a impetrar no imaginário coletivo das periferias brasileiras narrativas complexas e reais, que dialogavam assustadoramente com a realidade. Narrativa essa com notáveis teores de reflexões sociais, críticas ao sistema e a explicitação de realidades não presentes para a maioria dos brasileiros: o dia a dia do sistema carcerário. Além da evolução das letras e narrativas, a sofisticação da estética da capa e das bases chamou a atenção, deixando claro que o grupo não passaria despercebido perante outros setores da sociedade até então não alcançados pelas narrativas da periferia do Rap.
O disco é iniciado com uma bela versão de Jorge de Capadócia, oração de guarnição dos adeptos de São Jorge, imortalizada pelo homônimo cantor de sobrenome Ben. Na sequência o interlude Gênesis e na sequência a faixa Capítulo 4, Versículo 2, um verdadeiro soco no estômago da sociedade brasileira, até então nunca "afrontada" de maneira a se deparar com o formato musical duro e sofisticado do que o grupo define por "efeito colateral que seu sistema fez". A música conta com a participação do ex goleiro do Santos e filho de Pelé, Edinho.
Também são destaques no disco as faixas "Tô ouvindo alguém me chamar", que ao meu ver é um curta metragem no formato Rap, além da incrível "Diário de um detento", que alçou os Racionais a porta vozes e interlocutores das parcelas excluídas e marginalizadas da sociedade e que ganhou um histórico videoclipe. Surgiam os primeiros ídolos musicais da periferia com conteúdo altamente politizado recheado de ferrenhas críticas sociais, totalmente independentes e sem depender dos grandes meios de comunicação. Um fenômeno da indústria cultural sem precedentes até então no Brasil.
Segundo informações divulgadas pelo Racionais, o disco Sobrevivendo no Inferno vendeu cerca de 1 milhão e 500 mil cópias. A metade pirata.
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